Ao longo das entrevistas realizadas para a construção do estudo de mercado sobre Deep Techs, bem como, por meio da análise de fontes especializadas e cases de sucesso do mercado, foi possível perceber que o campo das chamadas ciências da vida é um dos mais maduros nacionalmente quando a pauta envolve a construção de deep techs e a presença de unidades de fomento para essas iniciativas, incluindo incubadoras, venture capitals e aceleradoras especializadas.
O próprio interesse do ambiente de negócios brasileiro em pesquisas na área começa dar sinais mais significativos, uma vez que, de acordo com pesquisa da CNI de 2017, três setores correlacionados com as ciências da vida (respectivamente a indústria química, de farma e de alimentos) estão entre os principais segmentos industriais que recebem investimentos em P&D por parte da iniciativa privada.
Nesse ponto, vale a pena definirmos, sinteticamente, o conceito de life sciences. Embora tenha um escopo amplo, quando falamos de ciências da vida estamos, em suma, nos referindo a estudos envolvendo organismos vivos, sejam eles plantas, animais ou seres humanos. Todavia, por se tratar de um conceito que pode abarcar uma série de especializações – de pesquisas genéticas a zoologia – nos concentraremos, no presente aprofundamento, na participação de deep techs que estão desenvolvendo novas tecnologias e novos processos em biotecnologia, na saúde (a partir de uma visão mais geral do mercado) e no campo da nutrição/alimentação.
Expectativas para as Deep Techs no segmento de biotecnologia no Brasil
Dito isso, para explorarmos o universo da biotecnologia, é importante analisarmos alguns números desse segmento no Brasil e no mundo. Nacionalmente, o mercado biotecnológico e biofarmacêutico é estimado em US$ 18 bilhões, de acordo com números do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (SINDUSFARMA). Além disso, um mapeamento da CEBRAP identificou 237 companhias atuando com biotecnologia no Brasil. Os dados são de 2017 e estão compilados em análise disponível no Portal da Bio Latin America Conference, evento realizado pela BIOMINAS, incubadora mineira especializada em biotecnologia. Globalmente, o mercado de biotecnologia foi avaliado em US$ 449 bilhões em 2019, segundo dados da Polaris Market Research. Já a Grand View Research prevê um crescimento médio 7,4% da indústria de biotecnologia até 2025, ano no qual esse mercado deve atingir investimentos na casa de US$ 721 bilhões.
No Brasil, pesquisas biotecnológicas no campo do diagnóstico e do tratamento de doenças são tendências que merecem destaque. É o que aponta, Euler Santos, diretor da Fundepar, conselheiro da BiotechTown e professor da Fundação Dom Cabral, ressaltando que o contexto atual, da pandemia de COVID-19, tem gerado uma importante luz sobre o trabalho das deep techs atuantes em biotecnologia.
“Diagnóstico e tratamento, sem dúvidas, são duas tendências muito positivas e que ganharam a mídia com a crise do COVID-19. Em termos de futuro, acredito que o que trará mais impactos são as pesquisas com o desenvolvimento de novos materiais para diagnóstico e tratamento, incluindo nanomateriais, materiais mais resistentes, biocompatíveis, próteses, enxertos e estudos para a regeneração de órgãos, que, em um médio prazo, devem chegar ao país com mais força”, explica Santos.
Na linha de de diagnósticos e tratamentos, aliás, um case interessante é o da brasileira Celluris, startup que faz parte do portfólio da BiotechTown, hub de inovação de Minas Gerais que já investiu mais de R$ 1,8 milhão em bionegócios do país. A Celluris é a primeira startup latino-americana a desenvolver tratamentos personalizados para o câncer por meio da imunoterapia CAR-T, que modifica as células dos pacientes para que elas reconheçam e eliminem tumores cancerígenos.
Outra startup do portfólio de deep techs da BiotechTown é a Aclin, que trabalha com engenharia clínica e desenvolveu o primeiro analisador e simulador multifunção que realiza testes de desempenho nos principais equipamentos médicos e exporta os dados para a nuvem para emissão de certificados e outros documentos.
As apostas do segmento da saúde em inovação
Nesse sentido, é possível perceber o evidente impacto das deep techs de biotecnologia na área de saúde, seja por meio do desenvolvimento de dispositivos e ferramentas que auxiliam na gestão da saúde e na atividade de profissionais da área; seja por meio de pesquisas para o desenvolvimento de terapias e medicamentos. O setor de saúde humana, por si só, aliás, conta com um ecossistema sólido de startups e deep techs no Brasil. Em 2018, por exemplo, a Liga Ventures mapeou 263 startups atuantes nesse mercado, incluindo 40 iniciativas (aproximadamente 15% das iniciativas do setor) atuando exclusivamente com inovação profunda.
Um dos motores para a construção desse cenário tem sido a busca pela digitalização em hospitais. Segundo números da Revista Medicina S/A, 85% dos hospitais brasileiros expressam a intenção de investir em tecnologias digitais. Globalmente, a indústria de inovação em saúde atingiu US$ 86,4 bilhões em investimentos no ano de 2018, podendo chegar a US$ 504,4 bilhões até 2025.
Pensando, exclusivamente, em inovação profunda na área de saúde, o veículo especializado na indústria de healthcare e tecnologia aplicada para a área de saúde, MedCity News, cita como tendências, dentre outros pontos: estudos em saúde comportamental para o combate de doenças como depressão, ansiedade e distúrbios alimentares; medicina de precisão (que utiliza dados de diagnóstico e o perfil genético de pacientes para o tratamento de doenças); cibersegurança para a proteção de dados de pacientes e organizações de saúde; além do uso de machine learning e inteligência artificial para tratamentos, diagnósticos e pesquisas.
Inteligência artificial aplicada na área da sáude
Inserida nesse contexto das pesquisas em inteligência artificial para a área de medicina, a Hoobox, startup de Campinas fundada em 2016, desenvolveu uma tecnologia para reconhecimento facial de alta precisão que pode atuar em diferentes aplicações desse setor.
“A Hoobox começou em 2016, especializada no mercado de saúde, com reconhecimento facial, inicialmente para detectar que o João é o João. Uma segunda camada da tecnologia que desenvolvemos foi a detecção de emoções, agitação e sedação, com o objetivo de analisar o bem-estar de pacientes em quartos de UTI e hospitais. Por fim, desenvolvemos uma camada mais analítica para avaliar níveis de dor. Treinamos um algoritmo para detecção de mais de dez níveis de dor. Para tanto, trabalhamos com pesquisa profunda. Todas as necessidades e os rigorosos critérios do mercado de saúde nos auxiliou bastante nesse sentido”, explica Paulo Pinheiro, CEO da Hoobox.
Com projetos, hoje, também na área industrial, a Hoobox foi incubada, em 2017, pela JLabs, laboratório de inovação da Johnson & Johnson, sediado no Texas Medical Center de Houston, maior centro médico do mundo, o qual desenvolve pesquisas de alto impacto na área de saúde.
Sobre as iniciativas de IA no mercado de saúde, vale salientar que, segundo o CB Insights, esse é um dos principais setores com participação de startups de inteligência artificial. Conforme cita a pesquisa, de 2013 a 2018, 576 negócios foram gerados nesse ecossistema envolvendo startups de IA, o que representa um valor de US$ 4,3 bilhões em investimentos ao longo de todo o período.
O crescimento do mercado de Food Techs
Dentro do universo de ciências da vida, outro mercado que tem atraído pesquisas e contado com o desenvolvimento de deep techs é o de alimentação. A consultoria de inovação britânica Rocket Space aponta como tendências deste mercado o desenvolvimento de alimentos plant-based (a base de plantas) e livres de proteína animal; uso de blockchain para o rastreamento da origem de alimentos; alimentos funcionais e dietas especiais. Por sua vez, em mapeamento lançado em 2019, a Liga Ventures destacou a presença de 54 deep techs atuando com inovação profunda em diversos elos da cadeia produtiva da indústria alimentícia – da conservação à pesquisa para produção de novos alimentos.
De modo global, espera-se que o mercado de Food Techs – startups atuantes no segmento de alimentação – como um todo, atinja um valor global de £196 bilhões em 2022. Além disso, de acordo com informações do PitchBook, até maio de 2018, fundos de Venture Capital haviam investido mais de US$ 1,3 bilhão no segmento, praticamente igualando o valor investido no ano inteiro de 2017 (US$ 1,5 bi).
O segmento de alimentos plant-based
No segmento específico dos alimentos plant-based – que só no varejo dos Estados Unidos atingiu US$ 5 bilhões em vendas em 2019; e, mundialmente, de acordo com dados da Innova, teve crescimento médio de 68%, dentre 2015 e 2019 – uma deep tech que vem se destacando no ambiente de negócios global é a chilena NotCo. Em março do ano passado, por exemplo, a startup, que desenvolve alimentos plant-based, recebeu investimentos de US$ 30 milhões em uma rodada de investimentos que incluiu o fundo de Jeff Bezos, fundador e CEO da Amazon. Luiz Augusto Silva, presidente da NotCo no Brasil, traça um panorama desse mercado e o potencial de crescimento do segmento no Brasil.
“O mercado de alimentos plant-based que oferecem o mesmo sabor de produtos de origem animal começou nos EUA em 2009 com substitutos vegetais para carne. É um mercado crescente, tanto pela sua inovação tecnológica como pela sustentabilidade. Sabemos que é inviável continuar alimentando a população mundial com base no mesmo modelo de criação de animais em larga escala. Também vemos um crescimento da população que se declara vegetariana. No Brasil, essa parcela cresceu 75% em 4 anos, entre 2012 e 2018. Vemos que os consumidores estão cada vez mais atentos ao impacto do que eles consomem e produzem e, por isso, podemos esperar novos competidores entrando no mercado plant-based e mais novidades em termos de produto”, comenta Silva.
Utilizando IA para o desenvolvimento de alimentos desde a criação da startup, a NotCo vem aprimorando seu algoritmo próprio que combina machine learning e biologia molecular por meio de pesquisa avançada. O presidente da NotCo no Brasil explica que, para o lançamento do primeiro produto da startup – a Not Mayo – a etapa de P&D levou 18 meses. Agora, a NotCo precisamos de apenas 4 meses para chegar em um novo alimento.
Outra deep tech que vem ganhando destaque no mercado brasileiro de alimentação é a nanoTropic, que desenvolveu e produz um nanoaditivo antimicrobiano capaz de imbuir materiais, como plástico, papéis, cerâmicos e tintas, de propriedades bactericidas e fungicidas. Isso faz com que seja possível aumentar a validade de alimentos, controlar vetores de infecções hospitalares, e amenizar substancialmente a ação de micro-organismos em inúmeras aplicações. Para Gustavo Suckow, CEO e Cofundador da nanoTropic, o crescimento das deep techs é uma tendência no Brasil, mas, para que sua real expansão seja efetiva, são necessários superar alguns desafios importantes.
“O mercado de deep techs é uma tendência mundial e muito promissora no Brasil. Vemos que há muito potencial intelectual no país para esse tipo de empresa, porém, há uma carência de infra estrutura pública e privada que auxilie e facilite esse mercado“, diz Suckow, ressaltando ainda uma necessidade de maior abertura, por parte das empresas, para o teste de novas tecnologias. Além disso, o empreendedor aponta algumas questões estruturais da indústria de alimentação, explicando que “esse mercado ainda está com a maturidade baixa com relação a absorção de novas tecnologias. As POCs são longas e a comunicação entre a grande empresa e a startup é lenta”.
Luiz Augusto Silva concorda com essa perspectiva, apontando algumas especificidades da indústria plant-based.
“Vemos três grandes desafios. O primeiro está na pesquisa e desenvolvimento, que tradicionalmente é uma etapa demorada e ainda se baseia em tentativa e erro. Nosso processo nos permite acelerar essa etapa, com um algoritmo para formular as receitas. Um segundo desafio é encontrar matéria-prima de boa qualidade e procedência e que não vá encarecer o produto final. O terceiro é a falta de incentivos fiscais e uma tributação elevada para os alimentos plant-based, em comparação com os incentivos e a tributação aplicada aos alimentos de origem animal. Conforme o mercado cresce, tentamos colocar essa pauta para discussão dentro do governo“, analisa Silva.
Incentivo para as Deep Techs no Brasil
De modo geral, por mais que, como vimos no início, as deep techs que atuam no universo das ciências da vida tenham um ambiente de pesquisa mais maduro no Brasil quando comparado com outros setores, ainda há muitos obstáculos para serem vencidos. Sobre esse ponto, Paulo Pinheiro, CEO da Hoobox, traça um quadro comparativo entre o ecossistema de deep techs nacional e o americano.
“Em 2017 começamos a ser incubados pelo laboratório de inovação da Johnson & Johnson e, quando chegamos lá, basicamente percebemos que todas as startups trabalham com inovação profunda. Estamos falando de tecnologias embasadas em um modelo de propriedade intelectual muito forte, com times de P&D muito eficientes. Daí começamos a comparar o nível de investimentos que uma startup de deep tech tem fora do Brasil e o que uma deep tech, como nós, recebíamos de investimento aqui no Brasil. A partir dessa percepção, adotamos uma visão mais objetiva do mercado, para respondermos a pergunta: como comercializar ciência? Para isso, há alguns pontos-chave essenciais: uma estratégia de propriedade intelectual bem definida, um excelente time de P&D, um plano de investimento a longo prazo, e que vamos ter o pipeline mais longo, quando comparadas com outras startups”, conclui Pinheiro.
Para contribuir com a superação dos desafios presentes no ambiente de negócios brasileiro, iniciativas como a BiotechTown trabalham em diferentes frentes para a construção de um ecossistema de deep techs mais robusto.
“A BiotechTown tem algumas ações específicas para fomentar uma mentalidade empreendedora nos pesquisadores: uma delas é um programa de desenvolvimento de negócios, focado na cultura e em fazer com que os pesquisadores vivam o ambiente empresarial, colocando-o em situações de negócio. Temos também trabalhado a questão da infraestrutura, por meio de uma unidade de laboratórios e uma unidade de produção, justamente para os pesquisadores terem acesso a uma infraestrutura propícia para a pesquisa e para a criação de produtos que não é muito comum no Brasil, mas já é realidade em economias desenvolvidas. Acesso a laboratórios; recursos financeiros e acesso a uma rede de networking para fortalecer as ligações com o mercado são princípios importantes para o desenvolvimento de uma deep tech e são pontos que a BiotechTown, em todos os seus eixos de atuação, tem reforçado”, aponta o conselheiro da BiotechTown, Euler Santos.
Via: LIGA