Engenheiro ambiental desenvolve protótipo de dispositivo e propõe a criação de uma rede para medir quando e onde pedalar de maneira a diminuir os riscos ao sistema respiratório.
Pedalar nas grandes cidades inalando a fumaça dos carros parece ser uma boa ideia? Em geral, podemos dizer que os benefícios dos exercícios físicos compensam os riscos associados aos poluentes, mas cada pessoa possui um limite no qual os benefícios da atividade deixam de superar os danos. Para saber precisamente qual é essa linha divisória, um estudo apresentou um protótipo para calcular a quantidade de partículas inaladas durante o trajeto. Com isso, será possível avaliar se o percurso compensa ou não e, assim, optar por caminhos menos arriscados.
É o que propõe Erick Frederico Kill Aguiar em sua pesquisa de doutorado desenvolvida no Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Ele adaptou sensores de baixo custo para acompanhar os ciclistas e calcular os prós e contras durante o percurso. O dispositivo pode informar quais são as melhores rotas, horários e tempos limites da prática do exercício de acordo com a necessidade e o perfil de cada pessoa.
A trilha do pesquisador
O pesquisador adaptou sensores que já existem no mercado e que tiveram de ser programados e ter o hardware alterado para que funcionassem como micro estações de monitoramento de ar. Erick criou um protótipo que foi acoplado ao guidão das bicicletas.
O pesquisador deixou o seu invento exposto ao mesmo ambiente de uma estação de monitoramento do ar da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) na zona Centro-Sul da capital paulista durante 17 dias. Nesse tempo, ele pôde calibrar o equipamento para que atingisse uma taxa de acerto de 80% em relação a da estação da agência ambiental.
Com uma impressora 3D, foi produzida uma caixa para proteger os sensores do impacto. Essas impressoras reproduzem estruturas tridimensionais desenhadas no computador através da injeção de várias camadas de material. A caixa produzida possuía furos por onde recebia a passagem de ar e abrigava o sensor. Além desse equipamento, os ciclistas usavam uma cinta na altura do peito que media a frequência cardíaca.
Antes dos testes, os voluntários passaram por exames ergoespirométricos para analisar o sistema cardiorrespiratório em um ambiente controlado. A partir desses dados, é possível saber quanto ar os pulmões são capazes de respirar e criar uma equação individual para medir a carga de poluentes inalada de acordo com os batimentos cardíacos.
Nesse primeiro teste, foram recrutados 15 ciclistas que faziam o percurso do trabalho ou do lazer para casa na Região Metropolitana de São Paulo, sendo que um deles trabalhava com entregas por aplicativo. Em média, cada um pedalava cerca de 19 quilômetros (Km) por dia. Foram selecionados apenas homens, já que há uma variação hormonal muito grande no organismo feminino, o que tende a alterar os exames nos períodos menstruais. Também não participaram da amostra pessoas com doenças cardiorrespiratórias, evitando assim que os resultados ficassem enviesados. Esses e outros grupos deverão ser testados futuramente.
Os resultados dos testes foram positivos para os 15 homens do grupo de referência. Isso permitirá o uso de aprendizado de máquina para acompanhar os demais grupos de acordo com suas particularidades. No modelo utilizado, foram três os fatores avaliados: a duração do esforço físico, a qualidade do ar segundo os dados da Cetesb e a concentração de poluentes no microambiente, que é medida relacionando a respiração do ciclista com o sensor instalado na bicicleta. Para cada participante, houve uma equação específica no código criado.
Os riscos relacionados à poluição vão do desenvolvimento de doenças respiratórias ao câncer. Entretanto, os resultados apontam que a prática do esporte é benéfica na maioria dos casos, mesmo com a fumaça inalada. Essa constatação tende a ser verdadeira inclusive para pessoas com problemas respiratórios: basta que a equação seja adaptada individualmente para informar os limites em cada ambiente de exposição. O ruim é ficar sedentário. “O que não dá é o indivíduo ficar nessa poluição e sem fazer nenhuma atividade física, porque ele só teria carga de poluente e o organismo não estaria compensando”, comenta Erick ao Jornal da USP.
Ficou demonstrado que, em alguns ambientes, como nas vias expressas, há um limite de tempo no qual a pedalada ainda é benéfica. Passadas algumas horas, o exercício pode não ser recomendável. Esse limite é calculado por um algoritmo, que pode também recomendar um itinerário que expõe menos o ciclista à poluição através de um aplicativo.
Com a tecnologia, os riscos relacionados a doenças cardíacas e respiratórias podem ser monitorados a fim de minimizar as chances de uma eventual insuficiência, a fim de estimular a prática esportiva. Mesmo sendo barato, o aparelho apresentou um alto grau de precisão.
Durante os testes, foram coletadas a saliva e as lágrimas dos ciclistas. Esse material biológico servirá para investigar possíveis processos inflamatórios, resultantes do contato com a poluição. O material será processado neste ano em uma nova pesquisa. Essa análise, associada aos dados coletados durante os percursos dos ciclistas, poderá indicar outros impactos ao sistema cardiorrespiratório, para cada indivíduo, resultantes da longa exposição à poluição.
Políticas públicas para a saúde e mobilidade
O próximo passo é miniaturizar o equipamento para que ele se torne um dispositivo vestível (wearable), tal como um smartwatch, e incorporá-lo a uma rede autônoma. Erick Aguiar pretende também desenvolver em breve uma rede de baixo custo para ampliar o alcance do monitoramento estimado do ar respirado pela população, colocando sensores em pontos estratégicos de regiões periféricas e de vias expressas. O cientista busca parcerias, uma vez que o dispositivo poderia ser incorporado a redes de empréstimo de bicicletas já existentes.
Na opinião do pesquisador, seria interessante estruturar uma nova engenharia de tráfego nas cidades. “Toda a infraestrutura para ciclismo deveria estar distante das grandes vias de tráfego”, argumenta ao Jornal da USP. Para incentivar o uso das bicicletas, seria preciso também aumentar a segurança das vias e a facilitar a integração com ônibus e Metrô. Na tese, ele sugere a adoção de percursos pendulares, ou seja, ciclovias que fujam do fluxo intenso.
O plano mais imediato do pesquisador, a ser proposto também na FMUSP, envolve um projeto de pesquisa para investigar o impacto da inalação de partículas suspensas no ar (mistura de compostos no estado sólido ou líquido) em crianças com lúpus, uma doença autoimune não contagiosa.
A poluição que respiramos
A Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou em abril de 2022 que 99% da população vive em locais onde a poluição do ar supera os índices aceitáveis. Com a melhoria da motorização, dos catalisadores e da tecnologia dos combustíveis, há uma tendência de diminuição do material poluente proveniente dos carros, mas o uso de combustíveis fósseis, as queimadas e outras práticas ainda são um problema não superado.
Atualmente, a qualidade do ar no Estado de São Paulo é medida através das 63 estações da Cetesb. Elas possuem tecnologia necessária para medir e classificar todas as partículas poluentes, como exigem as normas internacionais da OMS, e são acompanhadas por uma série histórica. As estações de medição são torres instaladas de maneira estratégica que coletam continuamente dados sobre as condições do ar e estão interligadas a uma central de computadores da agência ambiental.
Esse acompanhamento começou na década de 1970. Desde então, a poluição do ar diminuiu, mesmo com a frota de veículos aumentando no período, em grande parte devido ao Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve). “Na década de 1970, nós tínhamos uma concentração de 93 microgramas por metro cúbico [µg/m³] de material particulado na média anual. Em 2021, essa média caiu para 27 [µg/m³]”, informa Maria Lucia Guardani, gerente da Divisão da Qualidade do Ar da Cetesb.
Para Erick, os sensores de baixo custo poderão formar uma rede alternativa. “Não é jogar fora o que já temos de estações, mas usar os recursos de calibração delas e ampliar uma rede alternativa”, justifica o pesquisador ao Jornal da USP. A ideia surgiu do convite feito pelo professor Paulo Hilário Nascimento Saldiva, da FMUSP, durante o mestrado de Erick em Geociências Aplicadas na Universidade de Brasília (UnB).
Com a vinda a São Paulo e sob orientação de Saldiva, Erick, que trabalhava com modelagem da poluição do ar, passou a analisar os efeitos patológicos desses dados. O equipamento adaptado tem um sensor de monóxido de carbono (CO) e de partículas suspensas no ar. Ele relaciona essa coleta com os exames laboratoriais e os batimentos cardíacos dos ciclistas. “Como eu sou ciclista, me senti no dever de desenvolver o equipamento. A ideia foi fazer uma calibração dessa estação de baixo custo ao nível da estação da Cetesb.”
A tese aponta que, em um futuro muito próximo, as conexões 5G sejam utilizadas para conectar vários aparelhos como esse em tempo real. A micro estação que mede os poluentes pode ser miniaturizada para que caiba em um capacete, por exemplo. Com isso, mais ciclistas compartilhariam os dados, fazendo com que as informações locais fossem avaliadas em uma ampla rede de monitoramento da qualidade do ar.
Via: Jornal da USP